sábado, 17 de março de 2012

marítima


o seu vestido branco branco branco como noite de lua pálido na pele escura os cabelos soltos subindo subindo caindo caindo para todos os lados preenchendo o vácuo da presença objeto sideral atraindo corpos no espaço espaço cheio de distâncias destas que se observam entre si e seguem sua órbita longe longe longe dos olhos esses seus olhos grandes que alcançam tudo tímidos de tanta curiosidade curiosidade desnudante que não pede permissão esses braços magros que onduleiam como o cabelo e movimentam todo o resto do corpo todo o resto do quarto todo o resto do mundo e eu me mareio sinto no ar sua maresia que me enferruja eu aço oxidado nos seus braços ponte condenada longe deles desabo desabo desabo é no mar profundo que eu caio no pulmão água nos olhos sal vou boiando tal qual mensagem em garrafa esperando um dia a margem margem cheia de névoa da manhã misturando as linhas a que prometemos vida e juramos de morte essas coisas que a gente só vê no escuro afinal são os sorrisos dados em prestações são as lágrima pagas a longo prazo

terça-feira, 24 de janeiro de 2012

Esquina

Tinha os olhos fundos, como que se usassem o globo ocular pra se esconder do mundo. Ainda que taciturnos e branqueados da catarata, era possível ver-lhes vivacidade nos poucos momentos em que se permitiam um escrutinante olhar alheio. Busquei-os muitas vezes ao passar por aquela esquina e mesmo que deixasse ali uma ou duas moedas, raras vezes os recebi em troca. Era no fim da manhã que ficava com o acordeão de oito baixos, de teclas e dedos sujos, de corpo riscado e enrugado. Dela, muitas vezes, só se notava presença depois que os pés chutavam o chapéu e as moedas se agitavam umas contras as outras, produzindo som de almoço. Ficava no chão, membros e olhos. Os homens de preto, buscando andar como guardiões da estirpe, pateticamente imponentes, mantinham sempre os olhos estagnados no horizonte, a não ser para despir as roupas das moças, como se deles fosse o direito ao mundo. Não a viam. É verdade que caminhariam ali a vida toda sem ver lá muitas coisas. Não importa, não a viam, nem poderiam ver, mesmo que lhe jogassem os trocos dos bolsos dos paletós. Se a soberba embaça os olhos, não é estranho que o desinteresse entupa aos ouvidos. A coisa é que por ali se passava como se atravessa um corredor sem janelas. Como no escuro as pupilas se dilatam e os olhos se aguçam, é a luz do dia que a cegueira visita com mais frequência.

segunda-feira, 23 de janeiro de 2012

Para Siba

Também lembro do momento que parti
Inúmeras as vezes que voltei
A casa continua em pé
Quase em pé pessoas
A vida em ritmo de árvores
Num dia de vento e nuvens
Daqueles que olhar pra cima
Faz sentir-se o centro de tudo
Quando a gente para o céu se mexe
Em mim a sensação das nuvens
Ao redor de mim coisas no vento
Voltar é ir embora de um lugar
Especialmente na tarde fria
Chegar é dar-se conta da partida
Especialmente com café

quarta-feira, 17 de agosto de 2011

tempo corrido

faço memórias como quem sobrevive de si lembro porque é minha a memória porque recordar é lembrar em mim e sendo minha eu que nunca neguei o egoísmo me declaro no direito de lembrar como invento pois de inventar é que lembro e lembrando tanto e a todo momento me coloco nesse corajoso embate com o tempo do qual não pretendo sair vencedor já que a vontade maior é jogar na cara dele umas quantas inverdades mostrando que se de passado é o presente e se é o ofício mesmo do tempo passar de um lado pro outro que se passa quando ele vai de volta pra trás quando passa de banda e futuro passado presente qual é menos contemporâneo e onde que ele para pra que se possa contar sem que ele fique assim a passar enquanto se conta que além de ser muito do deselegante ainda dá e mais que dá fica dando o trabalho extra de continuar contando toda vez que parece que já foi tudo e se todo mundo se põe a falar sobre o tempo desde os clássicos e os lunáticos até os lunáticos clássicos será que vale de alguma coisa ser mais uma voz a ficar lhe inflando o ego este que já deve andar bem acariciado por ser tema assim tão recorrente digno da atenção de tanta gente quase a todo instante e a denúncia é que isso já é quase um monopólio pois que o tempo além de não deixar de passar o que já é de consenso um estorvo e de não deixar ninguém passar em seu lugar ainda fica nas bocas dos que passam por ele uma parte muito mais do que aconselhável do próprio tempo e está aí o círculo vicioso de que por mais que passe o tempo nunca nos deixa remédio que senão ficar pensando como ele passa e isso sem nem bem sabermos como já discutido anteriormente se ele passa mesmo de um lado pro outro sendo que essa direção de um lado pro outro equivaleria a do começo pro fim sem parar ou fazer rodopio é por isso que eu alço minha voz esta falando em nome da memória ressaltando que a intenção é ser revolucionário ainda que o adjetivo em questão ande meio desacorçoado aliás palavra esta que merecia voltar a moda mas o que importa é que o que é uma revolução senão uma embolada no tempo pra trocar de lugar o que ali estava desde sempre ou ao menos já deveria estar ou estava antes e de um momento pro outro arrancaram ou ainda estava no lugar certo mas em mãos erradas por isso espero que no fim eu tenha mesmo a razão entendendo por razão não a certeza eterna de estar certo mas a dúvida irrevogável de estar errado o que me coloca numa posição mais arrojada quiçá até confortável e não é que eu esteja advogando por uma espécie de negação da conversão salvadora aquela que no fim dos tempos há de nos salvar de modo relativamente igualitário desde que nossos camelos passem pelo buraco da agulha ou que se costure pela noite com a mesma agulha do dia ou algo parecido mas é que mesmo que exista o tal fim e ele inexoravelmente chegue um belo ou não tão belo dia ainda assim nada me convence de que eu caminho pra ele e não ele pra mim o que já o torna mesmo que fim amplamente questionável pois que já se sabe que talento não falta para a invenção de começos

terça-feira, 2 de agosto de 2011

Da Clarice

Foi lendo a Clarice dizer que não se somam maçãs e cadeiras que passei a não conseguir dizer mais "a minha vida". Esse mosaico de sentimentos, lembranças, sensações, interações acaba sempre numa história linear que alguém conta e reconta para si mesmo. Queria conseguir dizer "eu lembro" e associar, de repente, mil contradições, todas vivas, todas contemporâneas, todas conflito, e, ainda assim, todas eu e meu. Queria que a vida fosse um grito por perdição, desses que a gente grita pra ferir o próprio ouvido, e que, se pelo grito chegasse o socorro, este fosse para trazer cada vez mais encruzilhadas, ou mesmo que me carregasse para fora do caminho, por que é só sem ter de onde sair e aonde chegar que eu conseguiria estar em algum canto. Queria poder responder às perguntas que me fazem com respostas evasivas, inconclusivas, prolixas, inexplicáveis e que, de volta, recebesse, em vez de um sorriso de aprovação ou um franzir de desentendimento, mais palavras soltas, como se falássemos em línguas estranhas pelo simples prazer de sentir que as palavras vibram e que isso antecede todo e qualquer significado. Queria que fosse o corpo não só essa referência externa que eu vejo andar pelo tempo, esta coisa, coisa mesmo, que dá uma explicação subjetiva para o mundo apenas até onde se pode dizer “esta é minha trajetória”. Não, queria que meu corpo fosse meu mundo, e que ele se estendesse do infinitesimal até bem pra lá dessa pele, primeira fronteira que nos ensinam a reconhecer e entrincheirar. Queria que me ensinassem a arte de pular os muros antes da matemática de construí-los. E mesmo a matemática a queria, mas sem a ânsia de resolver todas as contas, pois que antes de resolver uma equação é preciso propor outra ainda mais complexa, e assim sucessivamente, até que não valha mais a pena voltar pra primeira. Queria maçãs e cadeiras juntas e divididas e multiplicadas e fracionadas e somadas e subtraídas até que mesmo separadas, já não saberia mais qual é qual.

segunda-feira, 1 de agosto de 2011

Eu gostaria de fazer uma observação

Caros senhores, não levem a mal estes roucos lamentos

Pois é através da fala que desato os nós do desabafo

De modo que gostaria de já pedir sinceras desculpas aos senhores

Mesmo que o palestrar seja ainda tão breve

Peço que relevem estas palavras ruidosas de catarro

É minha garganta, não os olhos, que umedece a fala

(Camarada, traga mais uma bebida, faça o favor

Que é sem dúvida o copo o ouvinte mais paciente)


Veneráveis colegas, perdoem se não vos reconheço

É essa aridez de julho que embaça-me a visão

Mas sem dúvida encontro-os nobres cavalheiros

Sendo, por isso, que faço esta breve nota explicativa

Obviamente apenas a título de mera introdução

E se falo em tais brados para tão seleta plateia

É que este mundo teima em fechar-me os ouvidos

Assim que é preciso erguer a voz para fazer-se escutar


Pois vejo que em dileta companhia encontro-me

De modo que não serei módico em minha fala

Não pouparei esforços para bem expressar-me

Pautando que o altíssimo nível dos espectadores

Permite-me o requinte de laurear as orações

Com o cabido recurso da riqueza vocabular

Fazendo com que a angústia destas palavras

Não acabe com todo o gosto de ouvirem-me


Agora vou diretamente ao cerne da questão

Ao perceber que já quase extrapolo o tempo

Que o bom senso separa ao meu cansado lamurio

Até por que acabo de perceber que os sábios senhores

Meus nobres interlocutores nesta escura e fria madrugada

Já não demonstram todo o entusiasmo do princípio

De modo que é de bom tom encerrar logo o preâmbulo

Para adentrar de uma vez na carne mesma de meu discurso


Doutos companheiros, perdoem pois o possível enfado

Que pode lhes causar estas minhas gratuitas lacrimosidades

Creio que alcançarei tê-las justificadas plenamente

Pela urgência em dizer-lhes tudo o quanto tenho anseio

Pela necessidade de compartilhar com os bons, no caso os senhores,

As minhas mais recentes descobertas acerca do mundo

Frutos, estas, do mais profundo e doloroso aprendizado

Possibilitado pelo decifrar do texto que a vida escreve por cicatrizes


Por fim, renomada audiência desta minha dialética solitária

Novamente desculpo-me caso canse vossos diletos ouvidos

Mas hão de dar-me razão tão logo ao término deste colóquio

Pois trago a placidez de saber-me arauto de notícias da nova era

(Se me permitem, claro, esta quase que mística metáfora)

Livre de confundir ingenuamente o novo com o bom

Devo confessar-me pessimista, o que foi por mim denunciado desde o começo

Antes de transmitir-lhes a mais premente das mensagens


Noto que os senhores estão a perguntarem-se, entre cochichos

Por que aqui, e por que agora, dá-se este inusitado momento

E devo dizer-lhes com toda a segurança e comiseração

Que quis a divina providência, a qual tenho enorme apego

De que vos calhasse a missão de escutarem-me esta noite

Pois vejo em vossos corações a coragem e sensibilidade necessárias

Para arcar com o peso deste monólogo cheio de significados

O qual exigirá dos senhores um ônus de não pouca responsabilidade


É, portanto, desta maneira que me encaminho ao final, meus honrosos senhores

Exaltando vossas qualidades, tão vastas quanto vossos deveres

Sabendo que assim dou por encerrado o fardo que é esta minha sina

E se sobre meus ombros paira a melancolia em lugar de alívio

É por ter a certeza inabalável de haver feito nada mais que o necessário

É por ter a clarividência da conturbação do tempo em que entramos

Assim que é por isso que não quero tomar sequer um minuto mais dos dignos senhores

E com pressa vos digo tudo aquilo que vos é preciso dizer:


Distintos senhores, a vida nunca será suficiente, pois que o pranto é rio perene. Agora façam-me o favor de irem a merda.



quarta-feira, 22 de junho de 2011

Educação sentimental

O ônibus de São Paulo estava sempre cheio e atrasado. Mesmo assim, nossa mãe sempre cumpriu o ritual de esperar a fila quase terminar pra caminhar em direção ao ônibus, aproveitando os silenciosos minutos de espera para velar nossos corpos de filho, pressentindo a separação iminente da carne. No entanto, assim também agia em descarnadas separações, umas com mais outras com menos vivacidade, porém sempre exigindo um retorno pródigo.



Daí que sempre um dia ou dois depois do Natal, ela levava a gente na rodoviária pra despedir da Tia. Esperavam todos sentados nas banquetas de cimento, menos nossa mãe, que tinha nojo dos assentos e das nossas roupas poluídas de cidade.



Pra despedir da Tia nossa mãe preparava a gente com antecedência: depois do banho tomado vestia a gente com os presentes ganhos e exigia a cara boa, responsabilidade de sobrinhos únicos. O ônibus chegava e a gente meio que na passividade. Ao ver o inevitável, a gente carregava as malas da Tia até a porta e, se pesadas demais, eu subia no ônibus, maravilhado de pisar naquele lugar tão sumidiço, sentindo ponta de inveja daquelas pessoas, que tinham pela frente quatro horas de poltronas e serras.



Na longa espera entre a porta fechar e o ônibus sair, depois de efusivas despedidas, a gente ficava em pé de frente pro embarque. Nossa mãe exigia uma voluntariosa coreografia: “A Tia tá olhando!”. Quatro mãos se levantavam e agitavam o ar, ao que uma respondia entre cabeças e janelas. Era o teatro de gostar da Tia.