terça-feira, 2 de agosto de 2011

Da Clarice

Foi lendo a Clarice dizer que não se somam maçãs e cadeiras que passei a não conseguir dizer mais "a minha vida". Esse mosaico de sentimentos, lembranças, sensações, interações acaba sempre numa história linear que alguém conta e reconta para si mesmo. Queria conseguir dizer "eu lembro" e associar, de repente, mil contradições, todas vivas, todas contemporâneas, todas conflito, e, ainda assim, todas eu e meu. Queria que a vida fosse um grito por perdição, desses que a gente grita pra ferir o próprio ouvido, e que, se pelo grito chegasse o socorro, este fosse para trazer cada vez mais encruzilhadas, ou mesmo que me carregasse para fora do caminho, por que é só sem ter de onde sair e aonde chegar que eu conseguiria estar em algum canto. Queria poder responder às perguntas que me fazem com respostas evasivas, inconclusivas, prolixas, inexplicáveis e que, de volta, recebesse, em vez de um sorriso de aprovação ou um franzir de desentendimento, mais palavras soltas, como se falássemos em línguas estranhas pelo simples prazer de sentir que as palavras vibram e que isso antecede todo e qualquer significado. Queria que fosse o corpo não só essa referência externa que eu vejo andar pelo tempo, esta coisa, coisa mesmo, que dá uma explicação subjetiva para o mundo apenas até onde se pode dizer “esta é minha trajetória”. Não, queria que meu corpo fosse meu mundo, e que ele se estendesse do infinitesimal até bem pra lá dessa pele, primeira fronteira que nos ensinam a reconhecer e entrincheirar. Queria que me ensinassem a arte de pular os muros antes da matemática de construí-los. E mesmo a matemática a queria, mas sem a ânsia de resolver todas as contas, pois que antes de resolver uma equação é preciso propor outra ainda mais complexa, e assim sucessivamente, até que não valha mais a pena voltar pra primeira. Queria maçãs e cadeiras juntas e divididas e multiplicadas e fracionadas e somadas e subtraídas até que mesmo separadas, já não saberia mais qual é qual.

2 comentários:

  1. Dizer o quê de um texto tão complexo e ao mesmo tempo tão banal.
    Dizer o quê do concavo e do convexo que a vida se torna quando nos damos conta de que tudo junto ou separado acaba sendo parte de nós mesmos.
    Maravilhoso Caio, simplesmente maravilhoso.
    Regina

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  2. querido, lindo texto. ando com um misto tão grande de sentimentos porque meu mosaico simplesmente desabou e minha argamassa não está mais aqui. queria também poder jogar palavras ao vento, sem sentido, sem precisar de sentido, sem querer fazer sentido algum. porque ando sem sentido, entorpecida que estou. gosto do seu texto. e afinal descubro onde é que vc se esconde. um beijo grande e saudade.
    shirley

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