terça-feira, 24 de janeiro de 2012

Esquina

Tinha os olhos fundos, como que se usassem o globo ocular pra se esconder do mundo. Ainda que taciturnos e branqueados da catarata, era possível ver-lhes vivacidade nos poucos momentos em que se permitiam um escrutinante olhar alheio. Busquei-os muitas vezes ao passar por aquela esquina e mesmo que deixasse ali uma ou duas moedas, raras vezes os recebi em troca. Era no fim da manhã que ficava com o acordeão de oito baixos, de teclas e dedos sujos, de corpo riscado e enrugado. Dela, muitas vezes, só se notava presença depois que os pés chutavam o chapéu e as moedas se agitavam umas contras as outras, produzindo som de almoço. Ficava no chão, membros e olhos. Os homens de preto, buscando andar como guardiões da estirpe, pateticamente imponentes, mantinham sempre os olhos estagnados no horizonte, a não ser para despir as roupas das moças, como se deles fosse o direito ao mundo. Não a viam. É verdade que caminhariam ali a vida toda sem ver lá muitas coisas. Não importa, não a viam, nem poderiam ver, mesmo que lhe jogassem os trocos dos bolsos dos paletós. Se a soberba embaça os olhos, não é estranho que o desinteresse entupa aos ouvidos. A coisa é que por ali se passava como se atravessa um corredor sem janelas. Como no escuro as pupilas se dilatam e os olhos se aguçam, é a luz do dia que a cegueira visita com mais frequência.

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